quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O VIDEOCASSETE E MEU PRIMEIRO BEIJO




– Quem quer ficar com o papel da bruxa?

– Eu, eu, eu! – Gritei, me antecipando às coleguinhas.

Para minha grande surpresa, ninguém mais se candidatou. Era a formação do elenco para uma peça do balé. A professora estava montando a historinha da Bela Adormecida.

Lá em Arroio Grande, no Rio Grande do Sul, a cidade era tão incipiente que não havia uma escola especializada em balé. Quando comecei os primeiros passos, as aulas eram improvisadas em alguma sala da escola primária. Até que ganhamos status e fomos transferidas para o prédio do “Artesanato” – onde o nome já dizia, funcionava uma associação de artesãos. As barras para as bailarinas se equilibrarem eram de cano PVC e não tínhamos espelho nem camarim, mas éramos cheias de entusiasmo.

Coube a mim, então, fazer o papel de bruxa. Fiquei tão orgulhosa. Minha roupa era preta, brilhante e eu tinha vários solos na apresentação. No auge dos meus 10 anos, eu estava me sentindo o máximo. A apresentação foi num clube muito chique da cidade.

E por falar em clube, como cidade do interior tem clube, né? Dia desses tive o prazer de conhecer o mais antigo do país. Fica em São Leopoldo, também lá no Rio Grande do Sul, e chama-se Orpheu – criado em 1858.

Enfim, em Arroio Grande tínhamos vários. A apresentação de balé foi no Clube do Comércio. Pena que na época não havia máquina de filmar, nem smarthpone, nem as facilidades atuais. Meu pai se virava com uma “yashika” para fotos e olhe lá.

Isso durou pouco. Muito moderno que era, meu pai comprou o primeiro videocassete da cidade. Ou o segundo. E para a alegria dele, e a nossa, logo começamos a ter em filmes todos os feitos, danças e apresentações. Ele e um amigo eram os únicos que tinham o aparelho.

Nos primórdios da tecnologia, o videocassete era uma geringonça pesada e nada prática. Para filmar era uma trabalheira. Num braço se carregava o aparelho com a fita, no outro uma máquina de filmar gigante. Mas meu pai estava lá, firme, registrando o dia a dia da família.

Não só de filmes caseiros viveu-se nessa época. Começamos a registrar festas, passeios e desfiles. Até uma peça de teatro.

Meu padrinho é metido a artista e montou uma peça teatral: “Grilhões”. Contou com a participação de vários amigos. Ainda sob o rigor da censura e da ditadura, foi corajoso em tocar em assuntos delicados como escravidão, liberdade e racismo. E não é que a peça fez sucesso em toda a região? A encenação também foi num clube que não lembro o nome. E está tudo registrado pela velha máquina do meu pai.

Esses mesmos amigos se empolgaram com a tal peça e resolveram fazer uma brincadeira, dessa vez mais suave: montaram um casamento de festa junina na AABB – outro clube!

E estava lá o elenco todo: noiva – interpretada faceiramente pelo meu padrinho; noivo, pai da noiva, padre, etc., etc. E meu pai registrando com sua parafernália toda a bagunça que foi feita.

Um ano depois estávamos mudando para Brasília. E o videocassete continuava na nossa vida. Fazíamos filmes caseiros e até registro das nossas competições de natação.

Como eu não conseguia ficar longe das ruas do interior, nas férias escolares, a primeira coisa que eu fazia era voltar a Arroio Grande.

Eu já morava em Brasília havia dois anos e o sedex naquela época não existia. Ganhei, então, a missão de levar na bagagem as fitas com nossos filmes para que os amigos de Arroio Grande pudessem ver as filmagens da capital.

Nessas férias houve por lá um festival da canção. Não recordo qual festival, porque no Rio Grande do Sul têm vários. Sei que foi em um parque – misteriosamente não foi no clube. Parque Guilhermino Dutra. Naquele tempo a gente chamava o lugar de “Prado”. Não sei hoje como é. Era um local de exposições agropecuárias, de feiras de artesanato e, naquele ano, palco de um festival de música.

Fazia uns dias que tinha um guri de Bagé me cuidando. Ou, para melhor entendimento, me paquerando.

Eu estava com meus 12 anos. Cabelo longo, aparelho nos dentes e uma inocência de doer. Mesmo morando em cidade grande ainda era garotinha do interior, com toda a beleza de assim o ser.

Durante o festival, ficamos trocando olhares e sorrisos.

Eu estava encantada. Pelo festival, pelas luzes do palco, pelo menino bonitinho que não tirava o olho de mim.

Foi então que, naquela noite, dei meu primeiro beijo. Um beijo suave, nervoso, apaixonado e marcante. Meu primeiro amor. Começamos um chamego infantil. A menina de Arroio Grande e o gurizinho de Bagé.

Desse namorico tenho boas lembranças. Algumas delas registradas em fita VHS. O tal amigo do meu pai, aquele que também tinha um videocassete, fez um filme numa tarde de sol para mandar lembranças para a família que me esperava na capital. E o namoro tá lá, registrado, com todos os sorrisos e nossas mãos dadas, em imagens que tenho medo que comecem a se apagar. Como as fitas antigas do meu pai.

FIM

* CRÔNICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO BLOG "DO MEU INTERIOR" 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

sábado, 6 de setembro de 2014

TATUAGEM




Foi como se um machado cortasse o pulso. Uma dor insuportável. O braço ardia em agonia. Dilacerado. O susto a fez tremer. Foi assim que despertou de uma soneca rápida naquela tarde: aos gritos.
A tatuagem no braço direito latejava. O desenho de um coração sangrando simplesmente pulsava. O sangue não era mais pintado. Era de verdade. Sujara a cama onde Estela adormecera minutos antes.
A garota de 20 e poucos anos morava sozinha. Mantinha, ela mesma, o corte de um moicano rosa feito na cabeça. Exibia uma maquiagem pesada que se acumulava na pele mal cuidada. Para pagar as despesas, fazia bico de atendente numa lojinha de roupas góticas de um amigo gringo.
Depois de gritar de dor, tomou fôlego e acendeu a luz fraca que tentava iluminar o quarto bagunçado.
– Que porra é esta?
Disse em voz alta.
– Que merda!
Praguejou ainda mais alto. Segurou o pulso direito, olhou mais de perto, mas não conseguia acreditar no que via.
Era a primeira tatuagem que havia feito na vida: um coração "retrô" vermelho atravessado por uma seta. E agora ele sangrava de verdade!
Correu para o banheiro, enfiou o braço na pia, abriu a torneira até o fim. A água caia forte em cima do desenho. Limpava o sangue mas não revelava cortes, nem mordidas de animal, nada. Era como se o coração sangrasse por conta da seta atravessada.
Estela passou a mão, esfregou a tatuagem com a esponja que estava caída no box. Era isso mesmo: a seta fazia o coração sangrar. O desenho todo se agitava.
A tatuagem estava viva.
Enrolou a toalha no pulso e correu para o guarda-roupa.
Vestia somente uma calcinha rasgada e uma blusa velha de propaganda política há muito descartada por alguém na igreja vizinha.
Ela era assim: passava uma vez por semana na igreja, não pra rezar, mas pra ver o que havia de donativos à disposição. Foi lá que conseguira dinheiro para fazer o tratamento dos dentes que no ano passado haviam caído.
Estela tinha levado uma surra do padrasto e perdeu dois dentes da frente. O mesmo sórdido que a estuprou quando tinha apenas 13 anos. Para conseguir visitar a mãe, a moça se arriscou encarar o homem bêbado. A mãe ficara paraplégica depois de um acidente de carro, onde tentava fugir do marido violento. Por absoluta falta de opção, voltou aos braços do agressor e vive à mercê da loucura do homem.
O padre da igreja é um senhor alegre, sorridente, o chamado “gente boa”. Sempre tem uma palavra de conforto para Estela. “Minha estrela”. É assim que o padre Mércio chama a garota punk cheia de piercings e tatuagens. E não se importa quando Estela "renova" o guarda-roupa com as doações.
Na ansiedade que estava, Estela pegou um vestido qualquer, pelo meio da sala, mesmo antes de chegar aos cabides minguados onde pendurava as roupas velhas. Trocou de roupa e saiu correndo de casa. De pés descalços, com o pulso amarrado na toalha. Ia em direção ao padre Mércio quando novamente sentiu uma chaga se abrindo. Dessa vez no pescoço.
Estela tinha um sol tatuado no pescoço. Que agora pegava fogo. Queimava a pele da garota. Ela gritou e voltou para casa, não conseguia andar de tanta dor. Voou para dentro do chuveiro e a água que caia em seu corpo amenizava a dor.
Não demorou muito e logo sentiu uma pontada no pulmão. Uma lança atravessava suas costelas. A espada de São Jorge lhe tirava o fôlego rapidamente. Estela tinha um dragão e o santo tatuados nas costas.
Sem aguentar o golpe, Estela caiu. No chão, sentindo a lança atravessada nas costas, gritou em agonia. Ninguém ouvia.
Foi então que, de uma das pernas dela, duas cobras começaram a rastejar pela pele. Subindo em direção ao seu rosto. Ela tinha duas serpentes tatuadas na perna.
Estela gritou mais uma vez mas já estava quase sem ar.
A noite chegou.
A porta da frente da casa estava aberta. Na pressa de chegar ao chuveiro, esquecera de trancar. E assim permaneceu até o outro dia.
Na manhã seguinte, um vizinho curioso achou estranho a porta escancarada e se atreveu a entrar para ver se estava tudo certo.
Encontrou Estela no chão da cozinha. Sem vida, com uma faca na mão. FIM

*TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO BLOG "BAR DO ESCRITOR"


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Bar do Escritor: TATUAGEM

Bar do Escritor: TATUAGEM: Foi como se um machado cortasse o pulso. Uma dor insuportável. O braço ardia em agonia.  Dilacerado. O susto a fez tremer. Foi assim qu...