quinta-feira, 31 de outubro de 2013

CONTOS DE TERROR PARA O HALLOWEEN



E NO HALOWEEN QUE TAL CONTINHOS DE TERROR?

BRINCANDO NO MAUSOLÉU: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4533775

A GAROTA DA BIBLIOTECA:http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4505371

A CHAVE: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4515011

O MISTERIOSO CASO DA MENINA QUE DESAPARECEU: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4522186

O HOMEM NO SOFÁ: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4508408

A NOITE MISTERIOSA DOS MORTOS-VIVOS: http://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/4506209

O MONSTRO DA GARAGEM: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4510718

MIL ANOS DE PRISÃO: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/4518591

domingo, 20 de outubro de 2013

BRINCANDO NO MAUSOLÉU


Ele fazia quase todos os dias o mesmo caminho. Uma trilha que cortava ao meio o matagal fechado. Estrada improvisada construída pelo tempo e por muitos que precisavam chegar ao cemitério.
A caminhada começava cedo. Antenor acordava de madrugada, com os galos cantando, como se diz. Tomava um café ralo, vestia a roupa limpa, encaixava o chapéu na cabeça grisalha e ia para o serviço. Embaixo do braço a marmita preparada na noite anterior. Era o almoço e muitas vezes a única refeição do dia. 
Antenor era viúvo. Pai de dois filhos que a morte insistiu em levar antes do tempo. Semianalfabeto, com as desgraças da vida, acabou contratado como coveiro da cidade.
Encarava a morte com despeito. Para ele – ela, a morte – era apenas uma dama exibida que ganhava créditos pelo que não era. Tratava a “dama” como inevitável e natural. Nada de mais. Nem de menos.
Não tinha religião. Andou metido em uns rituais de macumba mas achou demais para ele. Foi criado contrário aquilo tudo. Uma mãe rígida e pobre  levava a religião muito a sério e carregava o filho para os cultos no fim de semana. Depois da morte da mãe, Antenor se separou da igreja.
– Tudo a mesma merda, dizia cuspindo em seguida, enquanto fumava o tradicional cigarro de palha.
A rotina de Antenor era simples: acordar cedo, ir pela estrada mal- acabada, abrir os portões do cemitério e esperar. Esperar a morte chegar. A morte dos outros, porque a dele ele fazia questão de nem ligar. Se houvesse almoço, almoçava; se houvesse café, bebia. Ia vivendo os dias entre as lápides.
Os gatos eram sua única companhia. Eles tomavam conta dos túmulos, sombras e jazigos. Ficavam ali, entre as sepulturas, à espreita de não sei o quê. Lambendo o pelo e dormindo. Durante à noite eles acordavam.
Se houvesse enterro no dia, Antenor abria a cova e esperava com serenidade pelo defunto e a comitiva do velório.
Observava de longe. Nunca chorava à beira do caixão. Muitas vezes derramava lágrimas disfarçadas porque conhecia o morto. A cidade era pequena, não eram tantos, era fácil saber quem era quem.
Depois do enterro, Antenor repassava seus sentimentos à família, se retirava para o banho no chuveiro, que ficava atrás da sala da administração, e trocava a roupa. Comia o que sobrava da cerimônia fúnebre e se aprumava para ir embora.
Antes de trancar os portões do cemitério, fazia uma pequena ronda. Ao final, deixava comida e água para seus gatos. E pegava o rumo de casa. Morava num casebre simples e modesto pouco antes do fim da trilha.
Antenor percorria o caminho de volta entre insetos, escuridão e silêncio. A lua servia de iluminação. E apenas ela. Quando não havia lua, Antenor ia guiado pela experiência.
Aquele tinha tudo para ser um dia comum. Manteria a rotina. E assim fez:  Antenor chegou ao cemitério e foi logo avisado de que teria enterro naquela tarde.
Saiu para fazer a ronda da manhã quando percebeu que uma lápide estava fora do lugar.
– Mas que diabo é isso? Se eu pego quem fiz essa arte, eu mato. E enterro aqui mesmo. Que merda! Falava Antenor aos seus fantasmas.
Arregaçou as mangas e foi colocar a lápide no lugar. O problema que a tal pedra era pesada demais para um homem só. Ficava em um mausoléu de uma família muito antiga, os famosos e temidos Bragança. Famosos por serem ricos e fundadores da cidade. Temidos por serem cruéis e sem escrúpulos com os escravos. Antenor insistiu, mas não conseguiu arrumar a bagunça.
Deixou pra lá. Ninguém além dele ficaria sabendo, já que nenhuma pessoa visitava aquela família.
Antenor foi cavar a cova para o novo morador. Na ala mais recente, onde não há mais mausoléus nem grandes estátuas.
Fez o buraco e esperou.
O morto chegou. Antenor foi arrebatado por uma tristeza infinita.
O corpo era de uma menina. Uma criança de no máximo dez anos. Cabelos presos em trança. Vestido engomado. Lábios avermelhados. Parecia dormir.
“É a Ana, filha da dona Elizete”, pensou. “Valha-me nossa senhora, era uma menina tão boazinha”. Naquele momento esqueceu a falta de religião e fez o sinal da cruz.
Antenor enxugava o pranto com a luva suja de terra.
Quando finalmente fechou o túmulo de Ana, não tinha mais lágrimas a derramar.
A família da menina foi embora consolando uma mãe inconsolável. Eram poucos os amigos e parentes, mas suficientes para tentar aplacar a dor daquela mulher.
Antenor observou os carros indo embora. Não conseguiu comer as sobras do velório. Guardou tudo para os felinos. Pensou em entregar aos gatos, mas naquele início de noite eles estavam desparecidos. Abandonaram sem pudor todos os postos de vigilância.
Antenor chamou, chamou e nada. Nem um miado.
Resolveu dar uma caminhada pelos corredores do cemitério para ver se achava a gataria.
Entrou na ala dos esquecidos. Eram corpos emparedados e empilhados sem nome na lápide. Ninguém os queria, nem quando vivos, muito menos depois da morte.
Nada de gatos. Enquanto se dirigia para o final do corredor sentiu que atrás dele havia alguém. Virou-se rapidamente e pode ver de relance uma sombra que deixava o local. Como se alguém corresse para se esconder.
– Ei, quem ‘tá ai? Gritou Antenor. Nenhuma resposta. Pensou em voltar até lá, mas desistiu. Estava perto demais do final do corredor e precisava achar os gatos com rapidez, a noite já estava avançando e não havia lua suficiente para ele voltar pela trilha.
Apurou a audição e ouviu ao longe o som do que parecia ser um grito. Foi em direção a ele e lá estavam todos. Como reunidos numa cerimônia, os gatos estavam em volta da lápide mal acomodada do mausoléu dos Bragança.
– Arre, só que me faltava, primeiro a brincadeira com a pedra, agora esses bichos malditos, falava em voz alta para ele mesmo.
Foi em direção aos bichanos e eles nem notaram a sua presença. Antenor precisou gritar para que saíssem de uma espécie de transe.
Mexerem-se com uma lentidão enervante. Caminhavam como se donos da terra.
Antenor virou as costas e mais uma vez teve a certeza de ver uma sombra, dessa vez bem à sua frente. Na verdade duas sombras, que foram sumindo sem pressa. Antenor piscou bem os olhos, não estava acreditando no que via. Precisava sair dali.
Foi correndo em direção à administração. Pegou a marmita vazia, a chave dos portões e colocou-se depressa na trilha que o levaria até em casa.
Na estrada, apressou o passo. Sentiu aquela sensação quando se está sozinho e parece que tem alguém atrás da gente. Apressou tanto o passo que estava correndo quando avistou sua casa. Entrou sem limpar os pés. Fechou a porta com força. Dentro de casa, encostou as costas na porta e pode sentir uma batida estrondosa, como se a sombra que o seguia batesse nela.
Antenor se assustou. Acendeu as luzes da casa e esperou. Não houve mais nada. Nem barulho, nem batida, nem sombras. Nada. Apenas o silêncio da escuridão.
Não conseguiu dormir naquela noite. Foi assombrado pelos pensamentos e lembranças dos fatos da tarde.
No outro dia pela manhã, o sol mal apareceu no horizonte e Antenor se preparava para o trabalho.
Foi para o cemitério sem marmita, sem descanso e com medo.
Abriu os grandes portões. Não haveria enterro. O dia prometia ser calmo.
Pôde observar os gatos dormindo, nos postos de vigília, languidamente esperando o tempo passar.
Foi ver como estava a lápide no mausoléu violado. Chegando lá a surpresa maior foi que tudo estava normal.
Entrou sorrateiro, andou em volta e nada estava diferente. A lápide mexida estava de volta ao lugar.
Saiu do mausoléu e caminhou entre os corredores do cemitério. Meio sem rumo. Passou pela cova de Ana e ali sim, algo havia mudado.
As flores estavam surpreendentemente murchas e a lápide rachada. Ana Maria Bragança era o nome completo da menina.
Antenor não conhecia muito bem as letras, demorou a perceber a semelhança. – Bragança, Bragança,  eu já vi isso antes, disse para si.
Saiu correndo pelo cemitério a procura do nome. Acabou novamente  em frente ao mausoléu violado. Entrou e se deparou com o mesmo nome na lápide remexida: Ana Maria Bragança – a data da morte era 1734.
Nesse momento as portas do mausoléu fecharam com força. Antenor estava preso. Pode ouvir todos os gatos se aproximando da construção. Suava frio e tentou abrir a porta. Estava emperrada.
Sentia calafrios. Forçou a saída e nada. Lá fora os gatos reunidos faziam um barulho ensurdecedor. O sol que iluminava o ambiente por entre as vidraças simplesmente desapareceu. Ele foi tomado pela escuridão. Afastou-se da porta e começou a gritar pedindo socorro.

Os tocos de vela espalhados pelo chão serviram de ajuda. Antenor sacou o fósforo que carregava na calça, deixou os cigarros caírem do bolso. Com um risco certeiro, iluminou o ambiente. Nessa hora as duas sombras que anteriormente ele teve a impressão de ter visto se formaram na parede oposta a ele.
Antenor olhou para as sombras e viu nitidamente que duas meninas estavam à sua frente.
Eram mesmo duas crianças. Exalavam tanto terror que Antenor começou a chorar. Foi se agachando de medo. Pedia por favor, para que as meninas nada fizessem. Fechou os olhos. Podia ouvir a risada sinistra das garotinhas.
Ao abrir os olhos viu que as duas meninas haviam se aproximado. Estavam há pouco mais de um metro dele. Ele implorou pelo amor de Deus para elas deixarem ele ir embora.
Fechou os olhos novamente e ao abrir, as duas meninas estavam em cima dele. Riam em sua cara. Ele pode sentir o bafo de podridão que saia da boca desdentada de uma delas.
– Vem brincar com a gente, convidavam as meninas. 
Mais risadinhas assustadoras. Antenor estava apavorado. O coração batia descompensadamente.
As crianças colocaram as mãos no ombro do coveiro. Ele gritou. O medo assolou o corpo daquele homem e um silêncio grotesco tomou conta do lugar. Os gatos saíram correndo. A noite chegou.
Dois dias se passaram. A administração tentou avisar que haveria enterro naquela tarde, mas foi impossível. O enterro seria do próprio coveiro. Antenor foi encontrado morto. Congelado numa expressão de loucura e medo. Um novo funcionário foi contratado.
O que ninguém sabia é que Ana era a última descendente dos Bragança. Era tataraneta ilegítima do poderoso fundador da cidade. Resultado de um caso extraconjugal com uma escrava. Elizete, a mãe da última Ana Bragança, não fazia ideia do prestigio que poderia ganhar, nem da fortuna que poderia acumular sendo a última descendente da família.  
A outra Ana, menina do século XVI, morrera prematuramente vítima de uma tuberculose. Era uma criança quieta, sem graça, doente e solitária. A Ana de hoje seguia o mesmo destino, isolada, tímida e fraca, teve uma vida miserável. As duas finalmente se encontraram e seguiram pela estrada improvisada da vida. Com as almas perdidas foram em busca da alegria de viver e fizeram de Antenor um brinquedo fácil. Planejavam sair dali. O próximo passo seria deixar o mausoléu e o cemitério e ir brincar nas ruas da cidade. 


FIM







              

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A MENINA E A FLOR


A menina segurava a flor. O vento batia em seu cabelo ralo. Os pés no chão sentiam o frio da madrugada. Ela não passava de uma mancha na paisagem. As mãos ensanguentadas tremiam. Mas ela segurava a flor cada vez com mais força.
Começou a chorar. Chorou tão alto que os bichos da noite se esconderam na mata próxima. Ninguém passava por ali.
Lá atrás o carro da família ainda estava de cabeça para baixo.
A menina só queria mostrar a flor ao pai que dirigia. Uma distração. E a vida mudou o rumo.
Não restava carro, nem família, nem destino. Só a flor que agora já se desfazia com a ventania.
A menina ficou ali até o sol nascer. Sem consolo, tendo a solidão por companhia.
Ninguém veio ao seu socorro. Ela começou a andar. No horizonte o sol passou a brilhar alto. As sirenes da polícia não abalaram a menina, que simplesmente andou, andou, até secarem as lágrimas.
A flor se foi, o tempo passou e a menina virou mulher. Mora nas ruas, sem rumo. Se perdeu na rodovia e na vida.

* TEXTO PUBLICADO NO LIVRO  "BAR DO ESCRITOR - TOMO IV"  http://bardoescritor.blogspot.com.br/p/livros-do-bde.html


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

MIL ANOS DE PRISÃO



Texto baseado livremente em algumas absurdas histórias verdadeiras.

Sentença anunciada: mil anos de prisão. Ele recebeu a notícia de cabeça erguida, alheio ao que se passava em volta.
Rubens, 56 anos, braços e pernas algemados, uniforme sujo, barba crescida, nem de longe lembrava aquele que já tinha sido um homem bem apessoado, que inspirava confiança.
Entre os que acompanhavam o julgamento, desconhecidos, vítimas e algozes vorazes. Rubens, inabalável, falou em sua defesa que era tudo mentira, depois apelou para Deus e, num arroubo de insanidade, disse que nem se chamava Rubens. Negou o nome, a procedência e a vida demoníaca que o levara até ali.
Tudo começou 10 anos antes. Um Rubens em pleno auge de carreira de construtor. Irmão mais novo de uma família de cinco irmãos, Rubens perdera a mãe muito cedo. Fora criado por um pai bêbado e violento. Desde menino convivia com surras constantes e tortura descompensada.
Toda vez que o pai bebia, prendia os filhos em gaiolas espalhadas pela sala até que as crianças parassem de chorar. Ou até que a bebedeira fosse embora e a ressaca tomasse conta do dia. O pai de Rubens era um desempregado pária que morreu cardíaco e não fez falta alguma. Os filhos não se deram ao trabalho de ir ao enterro. Foi sepultado como indigente e esquecido.
Os cinco irmãos se separaram pelo mundo e Rubens se virou pintando parede e construindo muros. Evoluiu e montou uma pequena loja de materiais de construção.
Aos trinta e poucos anos havia construído a própria casa, cuidava da vida com tranquilidade e sequestrou duas crianças.
A loucura de Rubens chegou numa tarde em que passou em frente à escola fundamental da rua debaixo da casa dele. Avistou as duas vítimas quando dobrava a esquina. Eram os irmãos Cristina e Fernando. Ela tinha 12 anos , ele 13.
Com a demência que se instalou em sua alma, Rubens estudou a rotina dos irmãos. Eles chegavam sempre juntos, entravam sorridentes na escola. Na saída ninguém os buscava, iam a pé até em casa que não era longe dali.
Rubens passou uma semana de olho nos meninos. Até que um dia os abordou com um sorriso aberto e franco pedindo informação. Enrolou na conversa e acabou jogando os dois dentro da caminhonete que dirigia.
Prendeu os sequestrados no porão.
Os irmãos apavorados foram parar em duas gaiolas pequenas demais para grandes movimentos. Amordaçados, atordoados e com medo, choravam.
Mãos e pés amarrados, tanto gritaram em vão que cansaram. Acabaram adormecendo de tanto medo e frio.
No dia seguinte começou a jornada de uma década de tortura e maus tratos.
Por vários meses Cristina e Fernando ficaram trancafiados nas gaiolas. Enquanto Rubens construía um quarto ao lado do sótão. Deixava os irmãos presos dia e noite.  Ali mesmo nas gaiolas eles faziam as necessidades, bebiam água que Rubens deixava em pequenos potes de plástico. A comida era uma pasta que não exigia mastigação.
Ficavam amordaçados para não gritarem. Por um descuido de Rubens, certo dia Tina gritou tão alto que lhe rendeu um soco na cara. Ela ficou desacordada por três horas. Longas horas que quase mataram Fernando de tanto medo e angustia. Quando Tina abriu os olhos percebeu que perdera quatro dentes. Estava banguela e ensanguentada. Não recebeu nem um remédio, nada para aliviar a dor. Assim passaram os dias.
Finalmente a sala ao lado do porão ficou pronta. Estava escondida por uma porta de ferro que ficou atrás de um grande armário cheio de ferramentas. Mesmo quem descesse desavisadamente ao porão não poderia desconfiar que logo ali havia um cativeiro.
Rubens levou os dois irmãos até a nova sala. Dois catres esperavam por eles.  Sem cobertas nem travesseiros. Rubens  jogou os dois ali.  Perceberam um buraco no chão que funcionaria como banheiro. Um chuveiro improvisado com uma mangueira saia do teto. A luz era apenas de uma lâmpada que fora instalada embaixo de uma proteção de ferro, para que não houvesse perigo de ser usada pelos irmãos contra o sequestrador. Aliás, Rubens pensou em tudo. Nada ali naquele quarto dava a chance para os irmãos se armarem. Mesmo porque, Rubens instalou grilhões neles. Pesadas correntes amarradas nas pernas.  Nando e Tina criaram feridas nas canelas. Algumas sem cicatrizar nunca, outras até apodreceram a pele.
Durante meses não viram a luz do sol. Foram levados para um banho de sol amarrados às correntes. Um muro alto protegia a casa inteira. Nem vizinhos nem pedestres viam o que acontecia por ali. Atrás do terreno apenas uma floresta e sons estranhos de animais furiosos. Ninguém ouviu quando eles tentaram gritar por socorro.
Rubens bateu nos dois por demonstrarem tanta audácia.
Os irmãos foram novamente trancafiados e demoraram outros tantos meses para obter o benefício do sol.
Rubens visitava a cela dos irmãos todos os dias. Às vezes, contava histórias de como era torturado quando criança. Outras, tinha surtos de violência e chutava e espancava as crianças.
Quando finalmente as feridas nos dentes de Tina cicatrizaram, ele começou a sessão de estupros diários. Obrigava Nando a olhar tudo. Chegava quase sempre depois das refeições. Muitas vezes fazia Tina comer direto na tigela enquanto estuprava a menina. Tina estava muito machucada, completamente destroçada por conta dos abusos.
Rubens então passou a abusar de Fernando. Amarrava o menino na cama e estuprava sem piedade. Toda vez que algum tentava gritar ou se defender apanhava e muitas vezes Rubens estuprou os irmãos com eles desacordados mesmo.
Além dos abusos, inventou de torturar os jovens. Deixava cobras espalhadas pelo chão. Ratos também passaram a conviver com eles. Sufocava os dois enfiando suas roupas sujas garganta abaixo.
Para evitar os gritos torturou Nando com um alicate e cortou metade da língua do garoto.
A menina já perdera a esperança de continuar vivendo. Em pleno desespero, passou a menstruar. Todo mês que sangrava era obrigada a lamber seu próprio sangue. Até que um mês a menstruação não veio. Dois meses, três. Rubens desconfiou que Tina havia engravidado. Bateu tanto na jovem, distribuindo socos e pontapés que ela abortou. E perdeu a audição do ouvido esquerdo.
Passaram-se meses nessa rotina de aflição. O rosto de Tina estava irreconhecível. Teve praticamente o corpo todo quebrado de tantas surras.
Nando não falava mais. Também estava irreconhecível, perdeu cabelo, virou um adolescente magro, esquelético e raivoso.
Depois de vários abortos e muitas surras, uma criança sobreviveu no ventre de Tina. Ganhou a criança em meio a sujeira da cela. Abraçou a filha no colo por longos dez minutos.
Rubens vendeu a menina a um casal estrangeiro. Ficou satisfeito com o dinheiro. Avisou a Tina que na próxima gravidez ela não apanharia tanto e renderia uma boa recompensa.
Os estupros não pararam, as torturas ficaram cada vez mais elaboradas. Os meninos viram a juventude e a inocência morrerem naquelas paredes.
Rubens por várias vezes ficava dias sem procurá-los. Eram pequenas viagens que fazia a trabalho. Eram momentos que os irmãos aproveitavam para tentar fugir, gritavam desesperadamente, batiam em paredes, procuravam qualquer coisa que servisse de arma. E não conseguiam nada.
Cristina engravidou mais cinco vezes,  e em nenhuma delas conseguiu ter o filho. Agora Rubens batia nela por não ter lhe dado mais uma criança, já que na cabeça dele era uma boa maneira de ganhar dinheiro.
Certa manhã, contrariando todas as expectativas, Rubens  saiu e esqueceu de trancar a cela dos irmãos. Eles perceberam e correram desesperadamente em direção ao muro do quintal. Como não tinham voz, nem forças , o máximo que conseguiram foi chamar a atenção do filho da vizinha.
O menino brincava entre as árvores da floresta quando viu os irmãos tentando em vão escalar o muro alto. Então sorriu pra eles e começou a jogar pequenas pedras que carregara até o galho onde estava. Tina em um sussurro pediu para ele chamar o papai ou a mamãe. O menino não entendeu nada e ficou por um bom tempo jogando pedras e rindo. Até que Tina jogou uma pedra de volta e atingiu o rosto do menino. Ele começou a chorar e gritar pela mãe. Foi nessa hora que apareceu uma vizinha preocupadíssima com a criança e mal olhou em direção ao muro.
A mãe pegou o menino que contou entre lágrimas que duas pessoas haviam jogado pedras nele. Pra tirar satisfação, a vizinha foi bater na porta de Rubens.
Os irmãos correram para dentro de casa e começaram a bater de volta na porta, implorando para a vizinha chamar a polícia. Foi tudo muito confuso, a mulher demorou a entender e finalmente percebeu que os jovens pediam ajuda.
A polícia chegou. Já havia estado lá antes, mas nunca percebera o horror que se passava no porão. Encontraram os irmãos desfigurados, sujos e enlouquecidos. Rubens não voltou naquela noite.
Os irmãos contaram tudo á policia que montou guarda na casa de Rubens. Na manhã seguinte o homem chegou, estacionou o carro como se nada houvesse. Entrou em casa e finalmente foi surpreendido pelos policiais.
Rubens foi levado para a cadeia.
Os irmãos encontraram a família, ficaram sabendo da procura incansável por eles. Refizeram a vida.

Rubens foi julgado e condenado a mil anos de prisão.
Foi levado para a cela que ocuparia pelo resto de sua vida. Um cubículo mal cheiroso, bastante parecido com o quarto onde manteve os irmãos Cristina e Fernando.
Cada condenado daquele lugar sabia da história do sequestro, da tortura, dos maus tratos. Foi recebido com ameaças. O preso da cela ao lado cuspiu em Rubens quando ele passou.
Os guardas jogaram o homem ainda algemado no pequeno quarto imundo.
Rubens sentou no catre duro e desconfortável, o guarda tirou suas algemas e aproveitou para tirar o fôlego do prisioneiro batendo forte com o cassetete em sua barriga.
Assim como fez com os irmãos, ficou sem ver a luz do sol por muito tempo. Nos primeiros dias naquela prisão, Rubens aprendeu a não olhar os companheiros nos olhos. No refeitório nunca conseguia comer a comida em paz, já que os homens cuspiam em seu prato, isso quando não colocavam os pés na frente dele para que tropeçasse ao passar. Quando menos esperava, ia ao chão com bandeja e tudo.
Conseguiu autorização para trabalhar na lavanderia e logo no primeiro serviço foi encurralado pela turma mais pesada do presídio. Homens fortes, altos e simpatizantes do movimento skin head.
O líder foi tirar satisfação com Rubens.
– Então quer dizer que o senhor gosta de comer criancinha?
– Não senhor, respondeu Rubens
– Ah, agora eu sou mentiroso. Olha pessoal, eu sou mentiroso, falou o fortão para a gangue que o seguia.
Rubens não respondeu mais nada. Levou um soco, logo os outros homens começaram a bater também. Revezavam-se em  pontapés, socos, até que um deles teve a ideia de tirar as calças do homem todo encolhido no canto da sala. Todos riram e assim fizeram.
Sem calças, sangrando e imobilizado, Rubens foi currado por cada um dos homens da gangue. Restaram alguns dentes quebrados e muitas lágrimas.
A violência lhe rendeu três dias na enfermaria. E uma semana na solitária.
Assim iam passando os dias na cadeia. Todos se acharam no direito de fazer justiça com as próprias mãos. Mesmo depois de alguns meses Rubens ainda era torturado, abusado e espancado.
Vendo uma única saída para aquela rotina de violência se enforcou com o próprio lençol.
Deixou uma carta falando que não era culpado pelo que houve com os irmãos Fernando e Cristina. Em sua loucura, argumentou que Deus mandou purificar aquelas crianças, que estava sendo assombrado por crimes que não cometeu.
O corpo foi encontrado pelos guarda da ronda matutina. O homem foi enterrado sem ninguém para velar o corpo, nem mesmo um coveiro.
A partir daí coisas estranhas começaram a acontecer na cadeia.
Certa noite o vizinho, aquele que cuspia sempre que Rubens passava, estava já deitado e à beira do encontro com os deuses do sono, quando ouviu bem baixinho um choro, quase um uivo. Pensou que estava ouvindo o vento ou qualquer coisa assim. Mas o lamento  continuou. Levantou do catre e foi até as barras onde apurou a atenção. O som vinha da cela de Rubens. Ele não acreditou e colou a orelha na parede. Sim, o barulho vinha de lá. Manteve o ouvido na parede até que uma pancada altíssima fez com que se afastasse assustado.
Chamou os guardas que vieram correndo e ouviram a história do homem. Não havia nada na cela de Rubens, e mandaram que esquecesse aquilo, caso contrário ele entraria em castigo.
Na outra noite tudo se repetiu. O vizinho foi dormir chorando, ouvindo o murmúrio da cela vazia.
As portas do presídio começaram a se abrir sozinhas. E fechar também. Certo dia a ala dos chuveiros ficou trancada por duas horas sem que ninguém conseguisse abrir.
Na lavanderia todas as portas se escancararam ao mesmo tempo. Inclusive armários, máquinas, tudo se abriu de supetão.
As câmeras de segurança registravam tudo. E mais: toda vez que os carcereiros passavam em frente a cela de Rubens, sombras estranhas acompanhavam seus passos. Estava tudo lá, filmado e registrado.
Objetos caiam sem que houvesse vento.
Com o tempo os fenômenos foram ficando mais intensos. As portas batiam com mais violência.
O técnico responsável pelas filmagens pediu demissão. Não conseguia mais dormir muito menos ter uma vida normal. Estava sempre assustado e com medo.
A cela do homem nunca mais foi ocupada. Os gemidos da noite não deixavam que encarcerados ficassem por ali muito tempo.
No refeitório uma mancha enorme de sangue apareceu no chão. Como se uma quantidade grande de sangue houvesse encardido o assoalho. Nada tirava aquela marca.
Prisioneiros e carcereiros estavam apavorados.
O diretor não quis dar ouvidos a tantos disparates.
– Vocês estão agora achando que a cadeia está mal assombrada?  Poupem meus ouvidos, bando de maricas. Façam o trabalho de vocês, gritava o diretor para quem quer que reclamasse dos fenômenos.
Numa tarde de verão, um calor intenso tomou conta do local. Ninguém conseguia manter as roupas no corpo sem que encharcassem de suor. No pátio os homens se esgueiravam à sombra.
Logo um cheiro de queimado surgiu no ar.
– Porra, caralho, que merda de cheiro é esse? Perguntava o líder fortão que bateu em Rubens.
– Martelo, Linguiça, corram lá para ver o que tá acontecendo, mandou ele para dois de seus seguidores.
Martelo e Linguiça foram correndo. Voltaram num pé só avisando que a ala das “celas dos hediondos” estava pegando fogo.
Foi um alvoroço. Presos saiam correndo para todos os lados. Os guardas tentavam apagar o incêndio. Alguns prisioneiros aproveitaram para tentar uma fuga.
Formou-se um pandemônio.
Quando o caos se instalou simplesmente o fogo parou. Não havia mais fogo, nem fumaça, nem mais nada. Apenas um silêncio tenebroso, como se algum deus, ou demônio, tivesse mandado o mundo calar a boca.
Todos pararam o que estavam fazendo. Olhavam-se um para os outros sem entender o que estava acontecendo. Foi quando uma sirene ensurdecedora começou a apitar vinda de lugar nenhum. Todos caíram no chão. Ouvidos começaram a  sangrar, a dor era lancinante.
Estavam todos vivendo seu próprio inferno. Gritos, gemidos, raiva, medo. Tudo se misturava e novamente veio o silêncio. E mais nada aconteceu. Os guardas aos poucos foram levantando do chão, começaram a tomar providências.
Enfileiraram presos, ajudaram feridos e levaram todos de volta as devidas celas. Os corredores pareciam mais escuros, e tomados por uma presença demoníaca.
A área dos hediondos estava intacta. Como se nada tivesse acontecido.
O diretor procurou explicações, representantes políticos fizeram visitas, médicos, cientistas, físicos, nada explicou todos aqueles fenômenos.
Decidiram esvaziar o prédio. As pessoas estavam tão assustadas com o local que mais dois ou três se suicidaram em pânico.
O lugar ficou vazio.
A prisão ficou velha, ultrapassada e finalmente foi fechada. Nunca se achou uma explicação. 
Hoje toda a área está abandonada. Há quem escute os gritos assombrados e desesperados, iguais aos de Rubens, que se matou lá dentro e ainda tem quase mil anos de pena para cumprir.

FIM 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O MENINO QUE NÃO FEZ FALTA


“Letraerrada” sumiu naquele dia. Nem perceberam sua ausência.
O menino era o oitavo irmão de Anacleto, Berenice, Cleusiane, Doralice, Erivaldo, Francisco e Gervásio. Ele seria a letra H. A mãe queria Hércules, por causa das fotonovelas e filmes antigos que vira em preto e branco. Seria um herói, pensava a mãe nas horas vagas. O pai levou o nome ao moço do cartório. Não era lá tão versado em letras e o registro no cartório saiu como Ércules.  Logo o menino ganhou o apelido: o “Letraerrada”.
“Letraerrada” era magrelo, mesmo no auge de seus dez anos. Era franzino, com uma pele amarronzada carcomida pelos piolhos. Era pouco desenvolvido. De corpo e de cabeça. Era burro, como dizia seu pai.
“Letraerrada” não sorria, não chorava, não pedia nem reclamava. Sempre vítima das maldades infantis dos irmãos e irmãs, tinha medo de tudo, ou quase tudo. Só não temia a solidão.
Na pobreza em que viviam “Letraerrada” não brincava, não corria, nada fazia. Vivia sujo pelos cantos observando a natureza. A casa onde morava ficava isolada no meio do sertão de meu Deus. Poeira e desalento eram os únicos vizinhos.
Naquele dia “Letraerrada” ouviu de longe uma música alegre. Seus pobres ouvidos desacostumados com as cores da vida não reconheceu o som de um caminhão de circo.
Mas lá de longe chegava o tal caminhão, carregando a trupe toda que logo montaria lona próximo à cidade. “Alô amigos, não percam o espetáculo do palhaço Seu Zé e o amigo Chulé, amanhã no novo circo que está chegando”. Assim começava o discurso do som alto que saia do caminhão.
“Letraerrada” se encantou. Saiu correndo em direção à música. Parou na beira da estrada e o caminhão passou por ele. O menino não se segurou e saiu correndo atrás do velho carro colorido. Primeiro perdeu o chinelo do pé esquerdo. Deixou pelo caminho, sem arrependimentos. Depois caiu de joelhos na estrada de areia. O sangue logo apareceu, mas ele nem ligou. Levantou e correu novamente. Correu como nunca antes tinha corrido na vida. Correu sem medo, livre, como se deixasse pra trás toda e qualquer tristeza, como se arrancasse do peito toda a angústia e o peso de uma existência sem sentido. Nos lábios algo que poderia ser um sorriso se desenhou. As lágrimas tomaram o rosto de Ércules e ele correu, correu até tropeçar e cair de novo.
Dessa vez bateu a cabeça numa pedra. O caminhão foi embora sem tomar conhecimento da perseguição. Ércules caiu sem respirar. Caiu olhando para o céu. Não sentiu nada, como não sentira nada antes na vida. O ensaio de um pequeno sorriso congelou no rosto do menino que não fez a menor falta naquele dia.
Ércules foi encontrado no dia seguinte por Berenice e Doralice, meio por acaso, quando saiam para ir à cidade.  “Letraerrada” foi enterrado ao lado da casa dos pais. Sem música e sem circo. 

FIM

*texto original no livro "Bar do Escritor -TOMO IV" . se quiser comprar, é só me avisar.

** se alguém souber os créditos da foto, me informa. peguei na internet

tá nesse livro aqui. querendo comprar é só me avisar.