Texto baseado livremente em algumas absurdas
histórias verdadeiras.
Sentença anunciada: mil anos de prisão. Ele recebeu a notícia de
cabeça erguida, alheio ao que se passava em volta.
Rubens, 56 anos, braços e pernas algemados, uniforme sujo, barba crescida,
nem de longe lembrava aquele que já tinha sido um homem bem apessoado, que
inspirava confiança.
Entre os que acompanhavam o julgamento, desconhecidos, vítimas e
algozes vorazes. Rubens, inabalável, falou em sua defesa que era tudo mentira, depois
apelou para Deus e, num arroubo de insanidade, disse que nem se chamava Rubens.
Negou o nome, a procedência e a vida demoníaca que o levara até ali.
Tudo começou 10 anos antes. Um Rubens em pleno auge de carreira de
construtor. Irmão mais novo de uma família de cinco irmãos, Rubens perdera a
mãe muito cedo. Fora criado por um pai bêbado e violento. Desde menino convivia
com surras constantes e tortura descompensada.
Toda vez que o pai bebia, prendia os filhos em gaiolas espalhadas pela
sala até que as crianças parassem de chorar. Ou até que a bebedeira fosse
embora e a ressaca tomasse conta do dia. O pai de Rubens era um desempregado
pária que morreu cardíaco e não fez falta alguma. Os filhos não se deram ao
trabalho de ir ao enterro. Foi sepultado como indigente e esquecido.
Os cinco irmãos se separaram pelo mundo e Rubens se virou pintando
parede e construindo muros. Evoluiu e montou uma pequena loja de materiais de
construção.
Aos trinta e poucos anos havia construído a própria casa, cuidava da
vida com tranquilidade e sequestrou duas crianças.
A loucura de Rubens chegou numa tarde em que passou em frente à escola
fundamental da rua debaixo da casa dele. Avistou as duas vítimas quando dobrava
a esquina. Eram os irmãos Cristina e Fernando. Ela tinha 12 anos , ele 13.
Com a demência que se instalou em sua alma, Rubens estudou a rotina
dos irmãos. Eles chegavam sempre juntos, entravam sorridentes na escola. Na
saída ninguém os buscava, iam a pé até em casa que não era longe dali.
Rubens passou uma semana de olho nos meninos. Até que um dia os abordou
com um sorriso aberto e franco pedindo informação. Enrolou na conversa e acabou
jogando os dois dentro da caminhonete que dirigia.
Prendeu os sequestrados no porão.
Os irmãos apavorados foram parar em duas gaiolas pequenas demais para
grandes movimentos. Amordaçados, atordoados e com medo, choravam.
Mãos e pés amarrados, tanto gritaram em vão que cansaram. Acabaram
adormecendo de tanto medo e frio.
No dia seguinte começou a jornada de uma década de tortura e maus
tratos.
Por vários meses Cristina e Fernando ficaram trancafiados nas gaiolas.
Enquanto Rubens construía um quarto ao lado do sótão. Deixava os irmãos presos
dia e noite. Ali mesmo nas gaiolas eles
faziam as necessidades, bebiam água que Rubens deixava em pequenos potes de
plástico. A comida era uma pasta que não exigia mastigação.
Ficavam amordaçados para não gritarem. Por um descuido de Rubens,
certo dia Tina gritou tão alto que lhe rendeu um soco na cara. Ela ficou
desacordada por três horas. Longas horas que quase mataram Fernando de tanto
medo e angustia. Quando Tina abriu os olhos percebeu que perdera quatro dentes.
Estava banguela e ensanguentada. Não recebeu nem um remédio, nada para aliviar
a dor. Assim passaram os dias.
Finalmente a sala ao lado do porão ficou pronta. Estava escondida por
uma porta de ferro que ficou atrás de um grande armário cheio de ferramentas.
Mesmo quem descesse desavisadamente ao porão não poderia desconfiar que logo
ali havia um cativeiro.
Rubens levou os dois irmãos até a nova sala. Dois catres esperavam por
eles. Sem cobertas nem travesseiros. Rubens
jogou os dois ali. Perceberam um buraco no chão que funcionaria
como banheiro. Um chuveiro improvisado com uma mangueira saia do teto. A luz
era apenas de uma lâmpada que fora instalada embaixo de uma proteção de ferro,
para que não houvesse perigo de ser usada pelos irmãos contra o sequestrador.
Aliás, Rubens pensou em tudo. Nada ali naquele quarto dava a chance para os irmãos
se armarem. Mesmo porque, Rubens instalou grilhões neles. Pesadas correntes
amarradas nas pernas. Nando e Tina
criaram feridas nas canelas. Algumas sem cicatrizar nunca, outras até
apodreceram a pele.
Durante meses não viram a luz do sol. Foram levados para um banho de
sol amarrados às correntes. Um muro alto protegia a casa inteira. Nem vizinhos
nem pedestres viam o que acontecia por ali. Atrás do terreno apenas uma
floresta e sons estranhos de animais furiosos. Ninguém ouviu quando eles
tentaram gritar por socorro.
Rubens bateu nos dois por demonstrarem tanta audácia.
Os irmãos foram novamente trancafiados e demoraram outros tantos meses
para obter o benefício do sol.
Rubens visitava a cela dos irmãos todos os dias. Às vezes, contava
histórias de como era torturado quando criança. Outras, tinha surtos de
violência e chutava e espancava as crianças.
Quando finalmente as feridas nos dentes de Tina cicatrizaram, ele
começou a sessão de estupros diários. Obrigava Nando a olhar tudo. Chegava quase
sempre depois das refeições. Muitas vezes fazia Tina comer direto na tigela
enquanto estuprava a menina. Tina estava muito machucada, completamente
destroçada por conta dos abusos.
Rubens então passou a abusar de Fernando. Amarrava o menino na cama e
estuprava sem piedade. Toda vez que algum tentava gritar ou se defender
apanhava e muitas vezes Rubens estuprou os irmãos com eles desacordados mesmo.
Além dos abusos, inventou de torturar os jovens. Deixava cobras
espalhadas pelo chão. Ratos também passaram a conviver com eles. Sufocava os
dois enfiando suas roupas sujas garganta abaixo.
Para evitar os gritos torturou Nando com um alicate e cortou metade da
língua do garoto.
A menina já perdera a esperança de continuar vivendo. Em pleno
desespero, passou a menstruar. Todo mês que sangrava era obrigada a lamber seu próprio
sangue. Até que um mês a menstruação não veio. Dois meses, três. Rubens desconfiou
que Tina havia engravidado. Bateu tanto na jovem, distribuindo socos e pontapés
que ela abortou. E perdeu a audição do ouvido esquerdo.
Passaram-se meses nessa rotina de aflição. O rosto de Tina estava
irreconhecível. Teve praticamente o corpo todo quebrado de tantas surras.
Nando não falava mais. Também estava irreconhecível, perdeu cabelo,
virou um adolescente magro, esquelético e raivoso.
Depois de vários abortos e muitas surras, uma criança sobreviveu no
ventre de Tina. Ganhou a criança em meio a sujeira da cela. Abraçou a filha no
colo por longos dez minutos.
Rubens vendeu a menina a um casal estrangeiro. Ficou satisfeito com o
dinheiro. Avisou a Tina que na próxima gravidez ela não apanharia tanto e
renderia uma boa recompensa.
Os estupros não pararam, as torturas ficaram cada vez mais elaboradas.
Os meninos viram a juventude e a inocência morrerem naquelas paredes.
Rubens por várias vezes ficava dias sem procurá-los. Eram pequenas
viagens que fazia a trabalho. Eram momentos que os irmãos aproveitavam para
tentar fugir, gritavam desesperadamente, batiam em paredes, procuravam qualquer
coisa que servisse de arma. E não conseguiam nada.
Cristina engravidou mais cinco vezes, e em nenhuma delas conseguiu ter o filho.
Agora Rubens batia nela por não ter lhe dado mais uma criança, já que na cabeça
dele era uma boa maneira de ganhar dinheiro.
Certa manhã, contrariando todas as expectativas, Rubens saiu e esqueceu de trancar a cela dos irmãos.
Eles perceberam e correram desesperadamente em direção ao muro do quintal. Como
não tinham voz, nem forças , o máximo que conseguiram foi chamar a atenção do
filho da vizinha.
O menino brincava entre as árvores da floresta quando viu os irmãos
tentando em vão escalar o muro alto. Então sorriu pra eles e começou a jogar
pequenas pedras que carregara até o galho onde estava. Tina em um sussurro
pediu para ele chamar o papai ou a mamãe. O menino não entendeu nada e ficou
por um bom tempo jogando pedras e rindo. Até que Tina jogou uma pedra de volta
e atingiu o rosto do menino. Ele começou a chorar e gritar pela mãe. Foi nessa
hora que apareceu uma vizinha preocupadíssima com a criança e mal olhou em
direção ao muro.
A mãe pegou o menino que contou entre lágrimas que duas pessoas haviam
jogado pedras nele. Pra tirar satisfação, a vizinha foi bater na porta de Rubens.
Os irmãos correram para dentro de casa e começaram a bater de volta na
porta, implorando para a vizinha chamar a polícia. Foi tudo muito confuso, a
mulher demorou a entender e finalmente percebeu que os jovens pediam ajuda.
A polícia chegou. Já havia estado lá antes, mas nunca percebera o
horror que se passava no porão. Encontraram os irmãos desfigurados, sujos e
enlouquecidos. Rubens não voltou naquela noite.
Os irmãos contaram tudo á policia que montou guarda na casa de Rubens.
Na manhã seguinte o homem chegou, estacionou o carro como se nada houvesse.
Entrou em casa e finalmente foi surpreendido pelos policiais.
Rubens foi levado para a cadeia.
Os irmãos encontraram a família, ficaram sabendo da procura incansável
por eles. Refizeram a vida.
Rubens foi julgado e condenado a mil anos de prisão.
Foi levado para a cela que ocuparia pelo resto de sua vida. Um
cubículo mal cheiroso, bastante parecido com o quarto onde manteve os irmãos
Cristina e Fernando.
Cada condenado daquele lugar sabia da história do sequestro, da
tortura, dos maus tratos. Foi recebido com ameaças. O preso da cela ao lado
cuspiu em Rubens quando ele passou.
Os guardas jogaram o homem ainda algemado no pequeno quarto imundo.
Rubens sentou no catre duro e desconfortável, o guarda tirou suas
algemas e aproveitou para tirar o fôlego do prisioneiro batendo forte com o
cassetete em sua barriga.
Assim como fez com os irmãos, ficou sem ver a luz do sol por muito
tempo. Nos primeiros dias naquela prisão, Rubens aprendeu a não olhar os
companheiros nos olhos. No refeitório nunca conseguia comer a comida em paz, já
que os homens cuspiam em seu prato, isso quando não colocavam os pés na frente dele
para que tropeçasse ao passar. Quando menos esperava, ia ao chão com bandeja e
tudo.
Conseguiu autorização para trabalhar na lavanderia e logo no primeiro
serviço foi encurralado pela turma mais pesada do presídio. Homens fortes,
altos e simpatizantes do movimento skin head.
O líder foi tirar satisfação com Rubens.
– Então quer dizer que o senhor gosta de comer criancinha?
– Não senhor, respondeu Rubens
– Ah, agora eu sou mentiroso. Olha pessoal, eu sou mentiroso, falou o
fortão para a gangue que o seguia.
Rubens não respondeu mais nada. Levou um soco, logo os outros homens
começaram a bater também. Revezavam-se em pontapés, socos, até que um deles teve a ideia
de tirar as calças do homem todo encolhido no canto da sala. Todos riram e
assim fizeram.
Sem calças, sangrando e imobilizado, Rubens foi currado por cada um
dos homens da gangue. Restaram alguns dentes quebrados e muitas lágrimas.
A violência lhe rendeu três dias na enfermaria. E uma semana na
solitária.
Assim iam passando os dias na cadeia. Todos se acharam no direito de
fazer justiça com as próprias mãos. Mesmo depois de alguns meses Rubens ainda era
torturado, abusado e espancado.
Vendo uma única saída para aquela rotina de violência se enforcou com
o próprio lençol.
Deixou uma carta falando que não era culpado pelo que houve com os
irmãos Fernando e Cristina. Em sua loucura, argumentou que Deus mandou
purificar aquelas crianças, que estava sendo assombrado por crimes que não
cometeu.
O corpo foi encontrado pelos guarda da ronda matutina. O homem foi
enterrado sem ninguém para velar o corpo, nem mesmo um coveiro.
A partir daí coisas estranhas começaram a acontecer na cadeia.
Certa noite o vizinho, aquele que cuspia sempre que Rubens passava,
estava já deitado e à beira do encontro com os deuses do sono, quando ouviu bem
baixinho um choro, quase um uivo. Pensou que estava ouvindo o vento ou qualquer
coisa assim. Mas o lamento continuou.
Levantou do catre e foi até as barras onde apurou a atenção. O som vinha da
cela de Rubens. Ele não acreditou e colou a orelha na parede. Sim, o barulho
vinha de lá. Manteve o ouvido na parede até que uma pancada altíssima fez com
que se afastasse assustado.
Chamou os guardas que vieram correndo e ouviram a história do homem.
Não havia nada na cela de Rubens, e mandaram que esquecesse aquilo, caso
contrário ele entraria em castigo.
Na outra noite tudo se repetiu. O vizinho foi dormir chorando, ouvindo
o murmúrio da cela vazia.
As portas do presídio começaram a se abrir sozinhas. E fechar também. Certo
dia a ala dos chuveiros ficou trancada por duas horas sem que ninguém
conseguisse abrir.
Na lavanderia todas as portas se escancararam ao mesmo tempo.
Inclusive armários, máquinas, tudo se abriu de supetão.
As câmeras de segurança registravam tudo. E mais: toda vez que os
carcereiros passavam em frente a cela de Rubens, sombras estranhas acompanhavam
seus passos. Estava tudo lá, filmado e registrado.
Objetos caiam sem que houvesse vento.
Com o tempo os fenômenos foram ficando mais intensos. As portas batiam
com mais violência.
O técnico responsável pelas filmagens pediu demissão. Não conseguia
mais dormir muito menos ter uma vida normal. Estava sempre assustado e com
medo.
A cela do homem nunca mais foi ocupada. Os gemidos da noite não
deixavam que encarcerados ficassem por ali muito tempo.
No refeitório uma mancha enorme de sangue apareceu no chão. Como se
uma quantidade grande de sangue houvesse encardido o assoalho. Nada tirava
aquela marca.
Prisioneiros e carcereiros estavam apavorados.
O diretor não quis dar ouvidos a tantos disparates.
– Vocês estão agora achando que a cadeia está mal assombrada? Poupem meus ouvidos, bando de maricas. Façam
o trabalho de vocês, gritava o diretor para quem quer que reclamasse dos
fenômenos.
Numa tarde de verão, um calor intenso tomou conta do local. Ninguém
conseguia manter as roupas no corpo sem que encharcassem de suor. No pátio os
homens se esgueiravam à sombra.
Logo um cheiro de queimado surgiu no ar.
– Porra, caralho, que merda de cheiro é esse? Perguntava o líder
fortão que bateu em Rubens.
– Martelo, Linguiça, corram lá para ver o que tá acontecendo, mandou
ele para dois de seus seguidores.
Martelo e Linguiça foram correndo. Voltaram num pé só avisando que a
ala das “celas dos hediondos” estava pegando fogo.
Foi um alvoroço. Presos saiam correndo para todos os lados. Os guardas
tentavam apagar o incêndio. Alguns prisioneiros aproveitaram para tentar uma
fuga.
Formou-se um pandemônio.
Quando o caos se instalou simplesmente o fogo parou. Não havia mais
fogo, nem fumaça, nem mais nada. Apenas um silêncio tenebroso, como se algum
deus, ou demônio, tivesse mandado o mundo calar a boca.
Todos pararam o que estavam fazendo. Olhavam-se um para os outros sem
entender o que estava acontecendo. Foi quando uma sirene ensurdecedora começou
a apitar vinda de lugar nenhum. Todos caíram no chão. Ouvidos começaram a sangrar, a dor era lancinante.
Estavam todos vivendo seu próprio inferno. Gritos, gemidos, raiva,
medo. Tudo se misturava e novamente veio o silêncio. E mais nada aconteceu. Os
guardas aos poucos foram levantando do chão, começaram a tomar providências.
Enfileiraram presos, ajudaram feridos e levaram todos de volta as
devidas celas. Os corredores pareciam mais escuros, e tomados por uma presença
demoníaca.
A área dos hediondos estava intacta. Como se nada tivesse acontecido.
O diretor procurou explicações, representantes políticos fizeram
visitas, médicos, cientistas, físicos, nada explicou todos aqueles fenômenos.
Decidiram esvaziar o prédio. As pessoas estavam tão assustadas com o
local que mais dois ou três se suicidaram em pânico.
O lugar ficou vazio.
A prisão ficou velha, ultrapassada e finalmente foi fechada. Nunca se
achou uma explicação.
Hoje toda a área está abandonada. Há quem escute os gritos assombrados
e desesperados, iguais aos de Rubens, que se matou lá dentro e ainda tem quase
mil anos de pena para cumprir.
FIM
Puxa vida, que estória trágica e verdadeira. Não preciso dizer que foi muito bem escrita e arquitetada. Alguns detalhes me deram calafrios e o contexto todo é algo que mexe com nosso imaginário e nossos medos. No fim, tudo acaba sendo um ciclo maldito de morte e tortura. Rubens foi torturado, torturou, e foi torturado novamente, Todos que conviveram com ele acabaram sendo afetados por esse ciclo, que faz parte de nosso mundo desde o início dos tempos. É algo cruel mas que infelizmente acontece todo o tempo e é preciso ter muita coragem e sensibilidade para conseguir escrever um texto como este. Meus parabéns pelo exito em passar sentimentos e sensações por meio das palavras.
ResponderExcluirGrégor
gregor, brigada pela sua leitura. o pior mesmo é que por mais ficção que a gente faça, tem muita realidade por ai que nunca é contada. um beijo.
Excluircredo.
ResponderExcluirqueria que o mão branca pegasse esse rubens.
hahahah eu ia adorar.
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