“Letraerrada” sumiu naquele dia. Nem perceberam sua ausência.
O menino era o oitavo irmão de Anacleto, Berenice, Cleusiane,
Doralice, Erivaldo, Francisco e Gervásio. Ele seria a letra H. A mãe queria
Hércules, por causa das fotonovelas e filmes antigos que vira em preto e
branco. Seria um herói, pensava a mãe
nas horas vagas. O pai levou o nome ao moço do cartório. Não era lá tão versado
em letras e o registro no cartório saiu como Ércules. Logo o menino ganhou o apelido: o “Letraerrada”.
“Letraerrada” era magrelo, mesmo no auge de seus dez anos. Era
franzino, com uma pele amarronzada carcomida pelos piolhos. Era pouco
desenvolvido. De corpo e de cabeça. Era burro, como dizia seu pai.
“Letraerrada” não sorria, não chorava, não pedia nem reclamava. Sempre
vítima das maldades infantis dos irmãos e irmãs, tinha medo de tudo, ou quase
tudo. Só não temia a solidão.
Na pobreza em que viviam “Letraerrada” não brincava, não corria, nada fazia.
Vivia sujo pelos cantos observando a natureza. A casa onde morava ficava
isolada no meio do sertão de meu Deus. Poeira e desalento eram os únicos
vizinhos.
Naquele dia “Letraerrada” ouviu de longe uma música alegre. Seus
pobres ouvidos desacostumados com as cores da vida não reconheceu o som de um
caminhão de circo.
Mas lá de longe chegava o tal caminhão, carregando a trupe toda que
logo montaria lona próximo à cidade. “Alô
amigos, não percam o espetáculo do palhaço Seu Zé e o amigo Chulé, amanhã no
novo circo que está chegando”. Assim começava o discurso do som alto que
saia do caminhão.
“Letraerrada” se encantou. Saiu correndo em direção à música. Parou na
beira da estrada e o caminhão passou por ele. O menino não se segurou e saiu
correndo atrás do velho carro colorido. Primeiro perdeu o chinelo do pé
esquerdo. Deixou pelo caminho, sem arrependimentos. Depois caiu de joelhos na
estrada de areia. O sangue logo apareceu, mas ele nem ligou. Levantou e correu
novamente. Correu como nunca antes tinha corrido na vida. Correu sem medo,
livre, como se deixasse pra trás toda e qualquer tristeza, como se arrancasse
do peito toda a angústia e o peso de uma existência sem sentido. Nos lábios algo que poderia ser um sorriso se desenhou. As lágrimas
tomaram o rosto de Ércules e ele correu, correu até tropeçar e cair de novo.
Dessa vez bateu a cabeça numa pedra. O caminhão foi embora sem tomar
conhecimento da perseguição. Ércules caiu sem respirar. Caiu olhando para o
céu. Não sentiu nada, como não sentira nada antes na vida. O ensaio de um pequeno sorriso congelou no rosto do menino que não fez a menor falta naquele
dia.
Ércules foi encontrado no dia seguinte por Berenice e Doralice, meio
por acaso, quando saiam para ir à cidade. “Letraerrada” foi enterrado ao lado da casa
dos pais. Sem música e sem circo.
FIM
*texto original no livro "Bar do Escritor -TOMO IV" . se quiser comprar, é só me avisar.
** se alguém souber os créditos da foto, me informa. peguei na internet
tá nesse livro aqui. querendo comprar é só me avisar. |
Muito bom e verdadeiro. Escrito de forma simples e sem ensaio. As vezes precisamos de coisas assim para percebermos as coisas que nos cercam ou ignoramos sem saber. Afinal a vida é assim. Parabéns pelo texto que mais parece um relato verídico do quotidiano cinza que atravessa muitas pessoas, ignoradas e invisíveis.
ResponderExcluirGrégor
grégor, obrigada pelo parabéns. minha maior alegria é saber que toquei "seu coração". beijoca.
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